sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Trem de ferro

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O pequeno precisa erguer o bracinho franzino para alcançar a mão forte, calejada, dedos grossos, unhas toscas, no meio da qual a sua some com força; inquietos olhinhos brilhantes piscam assustados de um lado para o outro, ciscando imagens demais ao incompleto entender infantil.

De vez em quando olha para cima, a arguir em silêncio um algo do pai (o homem, com a fleuma das estátuas, às vezes espia mudo embaixo, quase sem mover a cabeça); de vez em quando olha para baixo: a malinha, sob o farnel, a esperar, como ele.

A maioria das imagens, as perderá para sempre, levadas pelo tempo à deslembrança; algumas, um algum número delas, o menino haverá de tê-las, inolvidáveis, até o dia inevitável.

A imagem do pai, do corpanzil engolido pelo terno inédito e puído, um azul-marinho assomado enorme e inerte ao seu lado, será uma das indeléveis..., e das últimas que levará dele.

Lembrará também durante sempre o cheiro envolvente que, muito embora de um ligeiro nauseante, trescala novidade; o odor - misto de óleo e fumaça - haverá de evocar muitos déjà-vu.

Decerto levará lembranças, memórias aturdidas; de uma, principal, nunca haverá de esquecer: na confusão da plataforma plangente descobre a menina a caminhar na sua direção, vestidinho caseiro de chitão, laços pareados na cabeça loura - um mais alto que o outro; do adulto que a conduz só vê o antebraço, o mais não importa.

A menina se aproxima..., passa por ele e sorri acanhada, e olha para ele ao passar... "ou não?!" , confunde-se, o pequeno; quer falar com o pai, espia no alto aquele rosto constante e suplica: "pai, eu gostei dela...", mas diz só no pensamento... seus olhos perfeitos marejam, se os dela convergem oblíquos - e vai-se, a menininha vesga.

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Vagão de passageiros; sentadinho junto à janela padece tanta saudade que nem consegue chorar; cabecinha encostada na vidraça lembra muitas coisas, olhinhos perdidos na plataforma enxergam nada.

Lembra da mãe...

Sufoca choro no peito, perto ainda da garganta na sua anatomia infantil; lembra de casa... e lembra a menina zarolha meio olhando pra ele com risinho sem graça, nos lábios vermelhinhos, vermelhinhos!...

‘Piuííí!’ - o apito colhe a sua tristeza.
‘Piuíííii...’ - nasce súbito, cresce agudo, morre rouco.

Ao apito sucede sacolejo seco e bruto - o primeiro, que faz o peito saltar de susto; o som agora é cadenciado, vagaroso, ritmado, acelera; mais ligeiro, cadenciado, compassado, e acelera; mais ligeiro, compassado, acelera, e acelera, e acelera...

A estação, qual o diorama do parquinho da quermesse, corre para trás, mais e mais veloz, até acabar; agora, casas, postes e gentes correm ligeiros de marcha à ré.

E ele oscila miúdo com o sacolejo do gigante de ferro - e pensa na mãe -, e chacoalha, e balança, sonolento - pensa na menina zarolha -, e chacoalha, e cochila...; abre os olhos, e balança, pestaneja - sua mãe carrega a menina zarolha no colo -, e chacoalha, e cochila - sua casa, seu terreiro, seu cão... -, e balança, fecha os olhos, abre os olhos - a menina zarolha na sua casa, com a sua mãe - e balança, sacoleja, e balança... olhinhos se fecham...; dorme...

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Acorda estranho, passando por lugar desconhecido: não sabe se hoje já é amanhã...; pelas janelas do vagão agora correm ligeiras umas paisagens que não as suas.

Chega enfim naquele lugar estranho; vai morar lá.
A mãe morrera há pouco.
Vai morar com a tia.
O pai morrerá em breve.
Viajará outras vezes de trem;
a menininha zarolha, esta não verá outra vez...
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quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Tchékhov

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“Aquilo que os escritores pertencentes à nobreza recebem ‘gratuitamente’, por direito de nascença, os homens do povo têm de comprar ao preço da sua juventude. Experimente, pois, escrever a história de um jovem, filho de servo, antigo caixeiro de venda, cantor de igreja, ginasiano e, depois, universitário; treinado a curvar a espinha e a beijar a mão dos padres; submetido às idéias de outrem; grato por todo pedaço de pão; cem vezes espancado; correndo miseravelmente calçado, a dar algumas aulas particulares; brigão; gostando de torturar os animais; aceitando agradecido os almoços dos parentes ricos; hipócrita perante Deus e perante os homens, sem qualquer necessidade, simplesmente por consciência da própria nulidade. Relate, ainda, como este jovem tenta libertar-se, gota a gota, do escravo que nele existe, e como, acordando em um belo dia, ele se dá conta de que não é mais um sangue escravo que lhe corre nas veias, mas o sangue de um ser humano”.


Assim, em carta datada de 1889, aos vinte e nove anos de idade, Anton Tchékhov descreveria o seu doloroso despertar de consciência.

Filho de um pequeno comerciante de aldeia e neto de servos da servidão russa (o sistema de semi-escravidão do Kreopostnoje Pravo) Tchékhov passaria a infância sob o despotismo de um pai autoritário e violento (“cem vezes surrado”); e a juventude, sob as vicissitudes de uma árdua luta para se formar em medicina – que pouco exerceria – ao mesmo tempo em que sustentava a família arruinada. Seguiria-se a vida de um homem extremamente preocupado com os problemas sociais da sua Rússia czarista, mas completamente desconfiado de qualquer sistema ou doutrina, fosse no campo sociológico, no literário, no filosófico ou no religioso.

Homem de paradoxos, acha-se nos seus contos e novelas uma indelével nostalgia pelas coisas religiosas e uma marcante concepção espiritualista, muito embora se confessasse materialista convicto.

“Sou um racionalista que, pobre pecador, ainda ama o repicar dos sinos”.

Cético e apaixonado, materialista e sonhador, tímido e perspicaz; homem objetivo, mas subjetivamente atormentado pelos grandes problemas sociais do seu tempo – e pelos grandes problemas morais de todos os tempos. Tchékhov repudiava qualquer tendência meramente contemplativa; repudiava a contemplação imanente à passividade ante a religião, e repudiava o próprio ceticismo inerte, igualmente contemplativo. Era um homem de ação. Referia-se com severidade e, ao mesmo tempo, com serenidade, à “multidão tola” (veja Condorcet), aquela massa obediente à coerção do coletivo e do poder, pois a sabia constituída de seres humanos. Seres humanos que, na sua visão, merecem receber o carinho paternal do artista, o responsável por sacudir-lhes os ombros à compreensão daquilo que lhes aparece diante dos olhos fechados. O destino da “multidão tola” era sua constante preocupação.

Por essa via árdua e sinuosa, o criador de grandiosos contos e novelas – que embora embebidos da simplicidade rural das suas gentes e dos seus lugares, são também marcados pelo engajamento e pela introspecção – tem hoje o nome inscrito entre os maiores. Coloca-se, portanto, ombro-a-ombro aos expoentes da literatura russa do século XIX, como nas palavras de Sophie Laffitte (veja mais aqui), que condensam os feitos e as faces daqueles mestres:

“Exteriormente, falta a Tchékhov o pitoresco. A literatura russa do século XIX apresenta uma galeria de tipos prodigiosos. Griboiedov, de vida curta e aventurosa; Púshkin, de sangue africano, genial e turbulento; Liérmontov, herói romântico, de semblante e existência trágicos; Gogol, o mais enigmático dos seres, dilacerado por contraditórias paixões e imergindo cedo na loucura religiosa; Dostoievski, vivendo todas as tragédias, grande como um profeta da Bíblia; Tolstoi, artista imenso. E Ostróvski, e Lieskóv, e Apolón Grigoriev, e Constantin Leóntiev!
Ao lado deles, Tchékhov! Um homem magro, ligeiramente curvado. Um rosto tranqüilo de olhos penetrantes, disfarçados por um lorgnon de aro dourado. Cabelos castanhos, muito finos, uma ligeira barba em ponta, uma expressão serena e concentrada. Traje correto, um tanto fora de moda. O ar de um intelectual russo médio. Tal é, exteriormente, Tchékhov. Mas a sua vida, que é igualmente tão pouco espetacular, tem a simplicidade, o rigor concentrado de uma tragédia. A tragédia da doença, da solidão e do gênio”.

(‘Tchekhov’, Sophie Laffitte; José Olympio, 1993)

(imagem)
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terça-feira, 26 de janeiro de 2010

A arte da ciência

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Placenta, cordão umbilical e embrião de 40 dias (A Child is Born).

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As belas imagens do desenvolvimento embrionário humano, realizadas nos anos sessenta pelo fotógrafo sueco Lennart Nilsson, integram o clássico da fotografia científica A Child is Born (1965).
Sem qualquer auxílio de computação gráfica, as fotos foram capturadas in vivo por câmeras convencionais adapatadas com lentes macro e ajustadas a um endoscópio (Nilsson é pioneiro nessa técnica).
Não é raro deparar-se com algumas delas (nem sempre com o devido crédito) em livros ou apostilas de biologia – poderão ser, portanto, familiares ao visitante.
Aos 87 anos, Nilsson é um dos mais conceituados fotógrafos de medicina do mundo; além de A Child is Born (republicado em 2009, desta vez com retoques digitais), outros trabalhos do fotógrafo são Close to Nature e The Human Body.
Amostras dos três trabalhos podem ser vistas no site do fotógrafo.
Eis um aperitivo:


Óvulo e espermatozóide no instante da penetração (A Child is Born)


O grão de pólen (Close the Nature)

Cromossomos (Human Body)

(todas as imagens: copyright © Lennart Nilsson Photography AB when nothing else is stated. All rights reserved worldwide)
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Update, 26 Jan, 18:30 hs: no site de Lennart Nilsson, no menu à esquerda, clique em Scientific Images - três sub-links surgirão com o acesso às amostras de fotografias integrantes dos trabalhos mencionados na postagem. Para acesso ao banco de imagens completo um cadastro é exigido.
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segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Retrato do artista quando jovem (respostas)


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Na postagem anterior, a proposta.
Agora, a resposta.
Então, aí estão, nomes e retratos dos artistas quando jovens:

(clique no asterisco para a fonte)

(1) Vinícius de Moraes [*]

(2) Gabriel García Márquez [*]

(3) João Guimarães Rosa [*]

(4) Fernando Pessoa [*]

(5) Clarice Lispector [*]

(6) Jorge Luis Borges [*]

(7) Gabriela Mistral [*]

(8) Cora Coralina [*]

(9) Carlos Drummond de Andrade [*] (editado)

(10) Agenor de Oliveira, o Cartola [*]

(11) Paulo Leminski [*]

(12) Rachel de Queiroz [*]


E o meu muito obrigado a todos que participaram.
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quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Retrato do artista quando jovem

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Sob o título emprestado do primeiro romance de James Joyce, o blog propõe uma brincadeira: tentar descobrir quem são as personalidades retratadas em tenra idade nas fotografias abaixo.

Dicas: são escritoras e escritores, poetas ou romancistas, todos de línguas ibéricas e, exceto um (que embora vivo entrou na lista por pura predileção), todos já viraram poeirinha cósmica.

Permita-se:

(clique para ampliar)


(1)

(2)

(3)

(4)

(5)


(6)

(7)

(8)

(9)

(10)

(11)

(12)


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No próximo post, a identificação e a fonte de cada fotografia.
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quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

A 'Arte Poética' de Jorge Luis Borges

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M. C. Escher, Drawing Hands (1948)
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(Publicado originalmente no Recanto das Letras, em 11/dez/09)

Todo grande poeta já escreveu sobre o próprio escrever.
O processo de criação é senão mais um tema sobre o qual se debruçar, no esforço de dizer o que há entre a ‘coisa’ indefinível e o objeto da experiência sensível: a criação literária, ela mesma.
Jorge Luis Borges usa o intertexto de forma soberba em Arte Poética, metalinguagem da própria poesia.
Borges refere-se à transitoriedade da existência, conforme a concebe Heráclito pela metáfora das águas do “rio interminável que passa e fica”.
E louva o desejo pela simplicidade, simbolizado pelo retorno de Odisseu a sua Ítaca, ilha que é a própria arte “de verde eternidade, não prodígios”.
Como Shakespeare, Calderón de La Barca, e depois Pessoa, diz que “a vida é sonho”, se a “vigília é um outro sonho”, e o sonho é a “morte de cada noite”.
Borges refere-se ao espelho onde se fita Dorian Gray, cuja imagem imortal e perene, diametralmente oposta à grotesca criatura encarcerada entre as molduras da pintura, é a arte “que nos revela a própria cara”.
Assim, a transitoriedade e o sonho são antípodas da imagem ideal do artista e do desejo pela simplicidade, atributos da arte literária, que, imortal, ri-se do próprio criador, este fugaz e olvidável.

Eis o Poema:

Arte Poetica

Mirar el río hecho de tiempo y agua
Y recordar que el tiempo es otro río,
Saber que nos perdemos como el río
Y que los rostros pasan como el agua.

Sentir que la vigilia es otro sueño
Que sueña no soñar y que la muerte
Que teme nuestra carne es esa muerte
De cada noche, que se llama sueño.

Ver en el día o en el año un símbolo
De los días del hombre y de sus años,
Convertir el ultraje de los años
En una música, un rumor y un símbolo,

Ver en la muerte el sueño, en el ocaso
Un triste oro, tal es la poesía
Que es inmortal y pobre. La poesía
Vuelve como la aurora y el ocaso.

A veces en las tardes una cara
Nos mira desde el fondo de un espejo;
El arte debe ser como ese espejo
Que nos revela nuestra propia cara.

Cuentan que Ulises, harto de prodigios,
Lloró de amor al divisar su Itaca
Verde y humilde. El arte es esa Itaca
De verde eternidad, no de prodigios.

También es como el río interminable
Que pasa y queda y es cristal de un mismo
Heráclito inconstante, que es el mismo
Y es otro, como el río interminable.

Ivan Jorge Justen Luis Santana Borges, 2006.

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(fonte da imagem)
(fonte do poema)
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segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Um ator notável, dois belos filmes

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Seu nome é João Miguel. Aos 39 anos, é ator veterano nos palcos baianos; no cinema, estreou em 2005 (‘Esses Moços’, de José Araripe Jr.). Menos conhecido, mas tão talentoso quanto seus conterrâneos Lázaro Ramos e Wagner Moura, este baiano de Salvador merece atenção. Ele pode ser visto em ‘Cidade Baixa’ e ‘O Céu de Suely’, entre outros trabalhos bem-sucedidos. Mas é como o Ranulpho de ‘Cinema, Aspirinas e Urubus’, e como o Alecrim de ‘Estômago’, que João Miguel emociona e arrebata.

Cinema, Aspirinas e Urubus’, premiadíssimo longa de estréia do pernambucano Marcelo Gomes, relata o inusitado encontro entre Johann (Peter Ketnath), o pragmático alemão vendedor de aspirinas , encantado em seu pragmatismo com as belezas e misérias do novo mundo que explora; e o sertanejo Ranulpho (João Miguel), homem sofrido, amargado pela vida, mas sonhador e sensível. A relação de amizade e seus temperos de tensão, bem como os encontros da dupla com um emblemático desfile de personagens, define o caráter intimista-universal da história. Trata-se de um conto vigoroso, que combina a narrativa fria com uma atmosfera de densa poesia; um conto-poesia, portanto, sobre o sertão universal – e intimista – e sobre indivíduos – universais, também –, a lidar cada um com suas dores e suas delícias. João Miguel é irretocável neste belíssimo filme.

Em ‘Estômago’ (do também estreante em longas de ficção, Marcos Jorge), João Miguel interpreta Alecrim, personagem ambíguo que inspira franca simpatia, mas também temor, a um só tempo; Alecrim é a alma do filme. ‘Estômago’ é orgânico, é visceral – e, sim, a redundante referência dos adjetivos ao título que se empresta de uma prosaica peça anatômica é quase cômica, mas não é por acaso. Quem imagina uma obra sobre gastronomia, engana-se. A comida é um motejo; personagens e suas relações – intempestivas, imprevisíveis e, repito, viscerais – são as marcas deste filme surpreendente. Atuação memorável do baiano João Miguel. Olho nele! Boas surpresas nos aguardam...
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Foto: Leonardo Lara (daqui)

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Foi uma merda...

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É espantoso como essa revistinha consegue ser tendenciosa, aliciada, despudorada, mentirosa, desonesta, canalha... (e por aí vai). Sim, falo de Veja, a “última flor do fáscio” * – levei para o banheiro, estava à mão, não pensei nas consequências: além do risco de desenvolver uma LER (virando páginas e páginas de publicidade) corre-se também o risco de ler... e morrer de raiva.

Já começa bem: Mainardi sugere aliança Serra-Marina contra a “desastrada candidatura de Dilma Rousseff” (mais e mais páginas de publicidade). Depois, ‘A Semana’: intrigas, distorções, textos medíocres (mais publicidade). Em seguida, mensalão do demo, matéria recheada de referências ao mensalão petista e de elogios àquele partidinho sem-vergonha, o demo ele mesmo, pelo comportamento na crise. Matéria sobre agronegócio, Caiado vociferando, pau no MST, não se disfarça os elogios rasgados a quem?... A ela mesma: Kátia Abreu! E publicidade, publicidade, infográficos, fotos imensas, bobagens, publicidade, listinha fajuta de livros mais vendidos, mais bobagens, mais publicidade... Arre!

...É, foi uma merda.

(imagem)
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* Para recordar: em entrevista à Caros Amigos (nº 127, outubro de 2007) Paulo Henrique Amorim se refere à Veja como a ‘última flor do fáscio’, em alusão ao poema de Olavo Bilac, ‘Última flor do Láscio’; na edição seguinte, leitor muito inspirado parodia o poeta parnasiano. Requentando, eis, paródia e poema (fonte):

Última flor do Fáscio, estulta e banguela,
que a qualquer um se entrega por dinheiro,
que se oferece lasciva ao estrangeiro,
duma mídia ruim és a pior mazela.

VEJA pela verdade nunca zela,
seus leitores empulha o tempo inteiro,
num estilo crapuloso, bem rasteiro
contra o que é certo está de sentinela.

Um tal Mainardi, que é seu colunista,
do Paulo Francis malfeita paródia,
não consegue esconder que é fascista

E outros defeitos, de uma enorme lista.
que se o interne, num hospício, em vil custódia,
para sempre longe de nossa vista

Pedro Ney S. Pereira, Recife/PE

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Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

Em que da voz materna ouvi: "meu filho!"
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!

Olavo Bilac
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Cai a máscara

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Depois da desarvorada manifestação de horror às gentes desfavorecidas pelo poder, adornada com requintes de uma visão de mundo mesquinha, preconceituosa e chã, Bóris Casoy caiu no gosto da blogosfera. 'Seu' Cloaca (do Cloaca News) não dorme em serviço e não deixa o caso cair no esquecimento. Eis o furo:

http://cloacanews.blogspot.com/2010/01/exclusivo-boris-casoy-e-o-comando-do.html

O lado z faz o diagnóstico: "isso aí explica muito, mas muuuuito, dos chiliques e faniquitos acerca do 3º PNDH..."

E tem mais no Cloaca, muuuuito mais...
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terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Hoje

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Hoje, com você, eu posso tudo:
Pintar o vento, provar a lua,
Posso cantar... ou ficar mudo
E assim te ouvir: ‘sou tua...’

Hoje, com você, eu sou capaz
De me existir sem condição –
Calar meu medo, dormir sua paz,
Falar silêncio, sorrir canção.

Hoje, com você, eu posso ser...
Ou ser menino ou ser gigante,
Ser a memória, ou o esquecer
Ser este eterno... Ou ser instante.

Hoje, com você, sou tudo isto
Sou o que duvida (e sou o que crê)
Sou quem eu posso, meu próprio cristo
Pois que bem sei, se com você
Eu não desisto
Sem este amor
Sequer existo...
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segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Epitáfio, ou Uma Piada


Gustave Doré, em 'The Raven' (E. Allan Poe)

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"Condamnés à la mort, condamnés à la vie, voilà deux certitudes"

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Arco infininto de um violino dissonante... até o instante em que a corda se partiu
Foi essa vida uma piada tão sutil
Que só de uns poucos arrancou algum sorriso
Mas se viver foi necessário e impreciso,
Viveu-se, entre a graça e a desgraça -
Nesse intervalo onde a rotina se disfarça
De sossego... ou de resignação
(e eu só queria era me ser sem condição...)
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quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

O sagrado e o profano na terra das águas

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Bons filmes não aspiram, necessariamente, ser leves, palatáveis; ao contrário, podem ser desconcertantes... ‘A Festa da Menina Mortaé um filme desconcertante. Senão pelo incômodo da atmosfera rude e pela surpresa de sequências inusuais (‘escandalosas’, diriam alguns), ele desconcerta pela crueza de uma ficção de mãos estendidas à realidade – ou vice-versa, a depender do observador. E não só por isso é um bom filme. Matheus Nachtergaele (estreante diretor, roteirista e compositor) acerta no argumento e na direção; fotografia, direção de arte e elenco (Daniel de Oliveira excepcional!) são espetáculos à parte.

O elenco – boa parte desconhecida do grande público – não desempenha papéis, apenas; atrizes, atores e figurantes vivem fragmentos de vidas reais, personagens de carne-e-osso encontradiços no seio daquela cultura peculiar, a Amazônia ribeirinha. Deles efluem diálogos espontâneos, de uma sinceridade irrefletida. E aqui não me refiro a improvisos, mas a ousadias, mérito dos próprios atores e, não menos, do olhar atento e (suponho) flexível do diretor. Imagino-o apresentando aos atores não um script, mas um assunto a ser comentado, discutido, confabulado (especialmente em cena memorável, onde contracenam Dira Paes, Juliano Cazarré e o rio). Daí em diante, a interação e a liberdade de interpretação ditam o curso dos diálogos. O resultado é um fluxo de cenas saborosas, de naturalidade instintiva, plenamente harmonizada com a atmosfera rude do pano de fundo.

A história trata de crenças e culturas, de misturas e extremos; trata, sobretudo, de uma gente sofrida e maltratada pela vida, cuja única perspectiva, além da promessa do absurdo, é a própria alegria incoerente. Desperta o interesse a caricatura da crença ingênua, pela singeleza dos seus elementos, pelo inusitado de seus adereços, pela suposta tolice que encerra em si. Todavia, ao observador atento, o fenômeno é tão-somente uma porção do todo: o gênero humano, com suas próprias crenças impostas pela dor de existir – crendices simplórias, talvez, mas sublimes e elevadas sob o julgamento ingênuo do homem que crê.

Crendice popular de elevado sincretismo religioso, o culto da Menina Morta permeia e norteia a vida de uma comunidade esquecida nos confins da Amazônia, a subsistir premida entre o sagrado e o profano. O ritual reúne elementos multiculturais e multiétnicos ajuntados ao longo do tempo; e, tal qual a própria lenda que retrata, o filme parece ter se construído pela agregação de uma variedade de elementos ao longo de uma complexa gestação (presumo um doloroso parto). O produto final é uma obra de grande beleza estética e conceitual. Através das suas lentes não se percebe apenas a realidade áspera do povo ribeirinho, mas a realidade do mundo – se “o sertão é do tamanho do mundo” *, o rio também o é.

Se não pela beleza estética ‘A Festa...’ despertar o interesse, talvez o desperte pelas entrelinhas, como o que se apresenta sob a forma do embate entre os extremos que não suportamos, e entre os quais procuramos confortavelmente nos adequar. Como disse, é um filme de extremos. De outra perspectiva, derrama aos pés do público o caldo cultural produzido pela realidade de uma região colonizada, abandonada pelo poder e sob a injunção do mito, que precisa encontrar seu próprio caminho num amontoamento de experiências e idiossincrasias. O resultado é uma mistura estranha e incômoda para os olhos acostumados com os assim chamados ‘padrões’. Como disse, é um filme sobre misturas.

E como um emblema, parida pelo embate bruto entre sagrado e profano, rebenta a sentença proverbial e irrevogável – muito embora vaga, obscura. Aos devotos da menina, aquele povo servil que sofre e clama, a derradeira mensagem é ambígua, pois sobre esse povo não deixará de pesar a sombra do mito nem a necessidade da sobrevivência. E a mensagem é: Coragem! , pois “quem tem medo da dor, tem medo do dia e da noite...” **.


* João Guimarães Rosa, em ‘Grande Sertão: Veredas’.
** O Santinho, n'A Festa da Menina Morta'.
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quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Poeminha de Amor


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O meu amor é assim:
Essa história sem começo
Esse gozo sem fim
Pois que nele reconheço
A parte infinita de mim
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