sexta-feira, 24 de setembro de 2010

"¡No pasarán!"

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Do site da Carta Capital.

Cureau, a censora

Mino Carta 24 de setembro de 2010 às 10:00h

Permito-me sugerir à doutora Sandra Cureau, vice-procuradora-geral da Justiça Eleitoral, que volte a se debruçar sobre os alfarrábios do seu tempo de faculdade, livros e apostilas, sem esquecer de manter à mão os códigos, obras de juristas consagrados e, sobretudo, a Constituição da República. O erro que cometeu ao exigir de CartaCapital, no prazo de cinco dias, a entrega da documentação completa do nosso relacionamento publicitário com o governo federal nos leva a duvidar do acerto de quem a escolheu para cargo tão importante.

Refiro-me, em primeiro lugar, ao erro, digamos assim, técnico. Aceitou uma denúncia anônima para proceder contra a revista e sua editora. Diz ela conhecer a identidade do denunciante, acoberta-o, porém, sob o manto do sigilo condenado pelo texto constitucional e por decisões do Supremo Tribunal Federal. Protege quem, pessoa física ou jurídica, condiciona a denúncia ao silêncio sobre seu nome. Ou seja, a vice-procuradora comete uma clamorosa ilegalidade.

Há outro erro, ideológico. Quem deveria zelar pela lisura do embate eleitoral endossa a caluniosa afronta que há tempo é cometida até por colegas jornalistas ardorosamente empenhados na campanha do candidato tucano à Presidência. A ilação desfraldada a partir do apoio declarado, e fartamente explicado por CartaCapital, à candidatura de Dilma Rousseff revela a consistência moral e ética, democrática e republicana dos acusadores, ou por outra, a total inconsistência. A tigrada não concebe adesão a uma candidatura sem a contrapartida em florins, libras, dracmas. Reais justificados por abundante publicidade governista.

Sabemos ser inútil repetir que a publicidade governista premia mais fartamente outras publicações. Sabemos que José Serra, ainda governador, mas de mira posta na Presidência, assinou belos contratos de compra de assinaturas com todas as maiores empresas jornalísticas do País, com exceção, obviamente, da editora de CartaCapital. Sabemos que não é o caso de esperar pela solidariedade dos patrões da mídia e dos seus empregados, bem como das chamadas entidades de classe, sem falar da patética Sociedade Interamericana de Imprensa. Estas, aliás, se apressam a apoiar a campanha midiática que aponta em Lula o perigo público número 1 para a democracia e a liberdade de imprensa.

Nem todos os casos denunciados pela mídia nativa merecem as manchetes de primeira página, um e outro nem mesmo um pálido registro. É inegável, contudo, que dentro do PT há uma lamentável margem de manobra para aloprados de extrações diversas. CartaCapital tem dado o devido destaque a crimes como a quebra de sigilo fiscal e a deploráveis fenômenos de nepotismo e clientelismo, embora não deixe de apontar a ausência das provas sofregamente buscadas pelos perdigueiros da informação, em vão até o momento, de ligações com a campanha de Dilma Rousseff.

Vale, porém, discutir as implicações da liberdade de imprensa, e de expressão em geral. É do conhecimento até do mundo mineral que a liberdade de informar encontra seus limites no Código Penal. Se o jornalista acusa, tem de provar a acusação. E informar significa relatar fatos. Corretamente. Quanto à opinião, cada um tem direito à sua.

Muito me agrada que o Estadão e o Globo em editoriais e, se não me engano, um colunista tenham aproveitado a sugestão feita por mim na semana passada. Por que não comparar Lula a Luís XIV, além de Mussolini e Hitler? Compararam, para ampliar o espectro da evocação. De ditadores de extrema-direita a um monarca por direito divino, aprazível passeio pela história.

Volto à carga: sinto a falta de Stalin, talvez fosse personagem mais afinada com a personalidade de Lula, aquele que ia transformar o Brasil em república socialista. Quem sabe, a tarefa fique para a guerrilheira terrorista, assassina de criancinhas.

Espero ter sido útil, com uma contribuição aos delírios de quem percebe o poder a lhe escorrer entre os dedos. A campanha midiática a favor do candidato tucano não é digna do país que o Brasil merece ser, e sim adequada ao manicômio. Aumenta o clamor de grupelhos de inconformados de uma velha-guarda que não dispensa militares de pijama, todos protagonistas de um espetáculo que fica entre a ópera-bufa e o antigo Pinel. Que tem a ver com liberdade de imprensa acusar Lula e Dilma de pretenderem “mexicanizar”, ou “venezuelizar” o Brasil? Ou enterrar a democracia?

Mesmo que o presidente não pronuncie sempre palavras irretocáveis, onde estão as provas desse terrificante projeto? Temos, isto sim, as provas em sentido contrário: os golpistas arvoram-se a paladinos de uma legalidade que eles somente ameaçam. A união da mídia já produziu alguns entre os piores momentos da história brasileira. A morte de Getúlio Vargas, presidente eleito, a resistência a Juscelino, o golpe de 1964 e suas consequências 21 anos a fio, sem contar com a oposição à campanha das Diretas Já. Ou com o apoio maciço à candidatura de Fernando Collor, à reeleição de Fernando Henrique, às privatizações vergonhosamente manipuladas.

É possível perceber agora que este congraçamento nunca foi tão compacto. Surpreende-me, por exemplo, o aproveitamento que o Estadão faz das reportagens de Veja, citada com todas as letras. Em outros tempos não seria assim, a família Mesquita tachava os Civita de “argentários” em editoriais da terceira página. As relações entre os mesmos Mesquita, os Frias e os Marinho não eram também das melhores. Hoje não, hoje estão mais unidos do que nunca. Pelo desespero, creio eu.

A união, apesar das divergências, sempre os trouxe à mesma frente quando o risco foi comum. Ameaça ardilosamente elevada à enésima potência para justificar o revide pronto e imediato. E exorbitante. A aliança destes dias tem uma peculiaridade porque o risco temido por eles é real, a figurar uma situação muito pior do que aquela imaginada até o começo de 2010. Desespero rima com conselheiro, mas como tal é péssimo. De sorte que estão a se mover para mais uma Marcha da Família, com Deus, pela Liberdade. A derradeira, esperamos. Não nos iludamos, no entanto. São capazes de coisas piores.

Otimista em relação ao futuro, na minha visão vivemos os estertores de um sistema, mudança essencial ao sabor de um confronto social em andamento, sem violência, sem sangue. Diria natural, gerado pelo desenvolvimento, pelo crescimento. Donde, por mais sombrios que sejam os propósitos dos verdadeiros inimigos da democracia, eles, desta vez, no pasaran. Eles próprios se expõem a risco até ontem inimaginável. Se houver chance para uma tentativa golpista, desta vez haverá reação popular, com consequências imprevisíveis.

Episódio representativo da situação, conquanto não o mais assombroso, longe disso, é a demanda da vice-procuradora da Justiça Eleitoral para averiguar se vendemos, ou não, a nossa alma. Falo em nome de uma pequena redação que não desiste há 16 anos na prática do jornalismo honesto, pasma por estar sob suspeita ao apoiar às claras a candidatura Dilma.

Sugiro à doutora Sandra que, de mão na massa, verifique também se a revista IstoÉ recebeu lauta compensação do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema quando o acima assinado em companhia do repórter Bernardo Lerer, escreveu uma reveladora, ouso dizer, reportagem sobre Luiz Inácio da Silva, melhor conhecido como Lula, publicada em fevereiro de 1978. Ou se acomodou-se em uma espécie de mensalão ao publicar oito capas a respeito da ação de Lula à frente de uma sequência de greves entre 1978 e 1980. Ou se me locupletei pessoalmente por ter estado ao lado dele na noite de sua prisão, e da sua saída da cadeia, quando enquadrado pela ditadura na Lei de Segurança Nacional, bem como nas suas campanhas como candidato à Presidência da República. Desde o dia em que conheci o atual presidente da República, pensei: este é o cara.

Mino Carta

(grifos meus)
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terça-feira, 21 de setembro de 2010

Língua - possibilidades e limitações para além da gramática tradicional

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Nota introdutória:

Se Ferdinand de Saussure * fundou em bases sólidas os conceitos da linguística moderna como ciência, coube a Noam Chomsky ** revolucioná-los. Pela mudança do foco de análise da estrutura da língua de ‘em si e por si’ (típico do estruturalismo saussuriano) para a sua inserção no domínio da mente - de onde ela rebenta - o mestre americano se contrapõe à visão empírica, mecanicista e comportamental do aprendizado da linguagem. Este é o fundamento do gerativismo, teoria linguistica revolucionária criada, desenvolvida e propugnada por Chomsky.

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Com base na teoria gerativista de Noam Chomsky, pode-se afirmar que a gramática (aqui referida em termos gerais) é um instrumento finito que permite gerar o conjunto infinito das frases bem formadas de uma determinada língua. Naturalmente, arrolar as ilimitadas possibilidades de uma língua num instrumento limitado é inexequível, de maneira que a estrutura mental do falante assume, instintivamente, essa tarefa. A gramática oferece as bases, o fenômeno da fala erige o intrincado arcabouço do edifício linguístico.

A possibilidade transformacional identificada por Chomsky, além de referenciada no caráter inato da linguagem, fundamenta-se também em determinadas propriedades sistematizadas e identificadas pelo estruturalismo de Ferdinand de Saussure (o gerativismo, em vez de contrapô-lo, usa e reformula o antigo modelo). A dupla articulação da linguagem é uma delas.

As unidades linguísticas são articuláveis, isto é, suscetíveis de divisão em unidades menores. Tal articulação ocorre em dois planos: o plano dos morfemas, no qual se articulam as unidades dotadas de sentido, e o plano dos fonemas, unidades vocais menores que os morfemas, desprovidas de sentido. Um número relativamente pequeno de fonemas (algumas dezenas) possibilita uma imensa gama de combinações, donde se terá um número consideravelmente maior de morfemas. Estes, por sua vez, podem se combinar em um número ilimitado de enunciados.

Além do que, de acordo com as dicotomias saussurianas – em especial as relações sintagmáticas e paradigmáticas e os componentes significante e significado do signo linguístico (para maiores informações, ver bibliografia) – a construção dos fatos linguísticos transita por uma vastíssima gama de possibilidades. Para o falante, o universo das combinações possíveis é infinito, embora se submeta a alguns princípios limitantes, além de se referenciar, sob o ponto de vista formal, na já mencionada norma gramatical. Refere-se aqui ao princípio da arbitrariedade, no sentido de que o significante é imotivado em relação ao significado, e ao caráter linear da língua, princípio limitante base das relações sintagmáticas.

Conclui-se que, não obstante a vastidão de elementos e de possibilidades peculiares à língua, naturalmente há importantes limitações de ordem formal ao seu uso. Todavia, tais limitações se impõem propriamente ao fato da comunicação, que não é de modo algum o único objetivo da língua; o indivíduo pode - e deve - se permitir, portanto, certas transgressões, sobretudo no campo da expressão artística, livre e flexível, como se verifica nos versos de João Cabral de Melo Neto:

Catar feijão se limita com escrever:
Joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
(...)
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a como o risco.

(Versos de ‘Catar feijão’; grifos meus).
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* Ferdinand de Saussure, linguista suíço, autor póstumo do Curso de Linguística Geral, tido como o ‘pai’ da linguística moderna.

** Noam Chomsky, professor de linguística do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e autor de Syntactic Structures.

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Bibliografia

SAUSSURE, Ferdinand. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 2006.

FIORIN, José Luiz (organizador). Introdução à Linguística – I. Objetos teóricos. São Paulo: Contexto, 2008.
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sexta-feira, 17 de setembro de 2010

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Sobre as dificuldades de não morrer (III)

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Omnia Vanitas, C. Allen Gilbert
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Ainda sobre as dificuldades de não morrer, e quanto a Borges, o que diz ele sobre a não-morte no seu conto O Imortal *?

Para muito além da viagem histórica e cultural proporcionada pelo escritor, poeta, tradutor, crítico e ensaísta argentino, este conto, tipicamente borgiano, é também uma obra de grande riqueza literária e vasta complexidade conceitual (como é, aliás, Jorge Luis Borges). Por exemplo, os intertextos e as multissignificações, elementos caros à Borges, acham-se aqui particularmente férteis. O conceito de ‘infinito’, outro traço típico nos escritos do autor (vide O Livro de Areia ** e O Aleph, conto-título da coletânea que inclui O Imortal), também aqui está presente de maneira marcante (uma nota: sobre a assertiva da presença do infinito na prosa borgiana, já li a respeito, mas careço das fontes; quanto à presença do mesmo conceito nas obras mencionadas, isso é claramente perceptível ao leitor).

Desse modo, com a sofisticação literária que lhe é característica e com o recurso dos elementos típicos da sua prosa, Borges desafia o ser mortal a enfrentar a ameaça da eterna existência. Em O Imortal, antes mesmo de confrontar seu protagonista com a promessa da imortalidade, Borges evidencia o temor do tribuno Marco Flamínio Rufo – o protagonista – ante tal arbítrio:

“Em Roma, conversei com filósofos que sentiram que aumentar a vida dos homens era prolongar sua agonia e multiplicar o número de suas mortes.” (p. 9)

Depois de longa jornada, e após vencer provações que por si só já o colocariam no panteão dos imortais (não pela imortalidade de fato, mas pela imortalização dos seus feitos – como Aquiles, que preferiu tal imortalidade a uma vida longa), o tribuno Marco Flamínio confronta-se com o preço a ser pago pela conquista vindoura. Uma de suas primeiras revelações é que a consciência exclusivamente humana da mortalidade converte o humano no único ser de fato mortal, porquanto
“(...) ser imortal é insignificante; exceto o homem, todas as criaturas o são, pois ignoram a morte; o divino, o terrível, o incompreensível, é se saber imortal.” (p. 19)

A convicção da imortalidade (divina, terrível, incompreensível), portanto, seria tão-só possível nos devaneios fantasiosos do artista criador, cujo produto é o desfile milenar de personagens da estirpe dos Imortais de Borges, ou do Dorian Gray de Oscar Wilde, ou do highlander das telas de cinema (ou da estirpe do Alá islâmico, do Javé judaico-cristão, de Tupi, de Baal, de Thor...).

Por esta mesma via, O Imortal questiona o significado do fervor religioso face à eternidade da alma, ao passo que sequer essa imortalidade 'virtual', como a professam as religiões, poderá de fato ser assumida como tal, se carente de significação e fraca no seu convencimento. Sobre isso, escreve Borges, com requintada ironia:

“Israelitas, cristãos e mulçumanos professam a imortalidade, mas a veneração que tributam ao primeiro século (a vida, como a conhecemos) prova que somente creem nele, uma vez que destinam todos os demais, em número infinito, a premiá-lo ou castigá-lo.” (p. 19)

E os efeitos da almejada imortalidade seguem a se revelar ao Imortal, agora abençoado com a maldição de ser eterno. Uma vez imortal, a vida prescindiria de significado (ou não o possuiria, simplesmente), pois cada ato pode ser precioso e rico em sentido, mas justamente pela possibilidade de ser o último; ou, noutras palavras, cada ato é precioso pela preciosidade do momento:

“A morte (ou sua alusão) torna preciosos e patéticos os homens (...); cada ato que executam pode ser o último (...). Entre os Imortais, por sua vez, cada ato (e cada pensamento) é o eco de outros que no passado o antecederam (...). (Entre os Imortais) nada é preciosamente precário.” (p. 21)

Perder-se-ia, pois, com a imortalidade, a preciosa significação da existência (a assumir a existência assim preciosa); e se perderá muito mais. Como acabará por testemunhar o tribuno Marco Famínio, perder-se-á a própria humanidade. O povo imortal de Borges é descrito como figuras bestiais “que devoram serpentes e carecem do comércio da palavra”; ou, ainda, como “homens de pele cinzenta, de barba desleixada, nus” que dormem em nichos escavados nas rochas e habitam ruínas, sugerindo mais figuras animalescas que humanas. E entre eles, entre os imortais, a grande surpresa de encontrar Homero, o lendário poeta grego – uma lenda imortal, ou um homem imortalizado pela lenda?... (a propósito, o supreendente encontro com Homero entre os imortais suscitará novas surpresas até o final do relato...).

Trata-se, enfim, de um tema árduo, pois falar da morte expõe a brevidade da vida, tanto quanto pressupõe o confronto com aquilo que transcenderá a vida – para uns, o Mistério; para outros, o Nada... E por árduo que seja o tema, o realismo fantástico de Borges o examina sob a 'fantasia da realidade' (como, quanto ao mais, qualquer narrativa de realismo fantástica), o que o torna mais palatável: é menos custoso encarar a realidade dura quando sob o véu do irreal.

Ainda a despeito da aridez do tema, sobrevive o ensinamento proverbial, tanto clássico quanto borgiano, da possibilidade humana de se converter (ainda que de maneira provisória) num ente imortal. Escusado o inevitável oximoro, a esta imortalidade se poderia dar o nome de ‘momento’ (eterno em si), ou de ‘feitos’– sejam eles os feitos heroicos que imortalizaram Aquiles ou os feitos literários que imortalizam o próprio Borges; visto que, embora fugaz e olvidável, o autor imortaliza-se na sua própria obra (sobre este particular, leia mais aqui).

É assim que, por meio da arte, Jorge Luis Borges confronta esta temática tão incômoda quanto pertinaz: a morte. Em O Imortal ele emprega os elementos típicos da sua linguagem – a figura do infinito, as imagens de ecos e labirintos, de espelhos dentro de espelhos – tudo perpassado pela multissignificação e sob uma constante intertextualidade: os significados em perspectiva infinita, um texto a se remeter a outro texto, e a outro, e a outro... oxalá fosse assim com as mortes... Todavia, sabe-se que não o são, ao que sobra se deixar conduzir pela arte na contenda contra a angústia da brevidade. E buscar, quem sabe, uma “re-representação” da realidade e da própria vida. Este é o recado de Borges... Muito embora ela conclua assim O Imortal:

“Palavras, palavras deslocadas e mutiladas, palavras de outros, foi a pobre esmola que lhe deixaram as horas e os séculos.” (p. 25)

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* BORGES, Jorge Luis. O Aleph. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. [Tradução de Davi Arrigucci Jr..]

** ______. O Livro de Areia. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. [Tradução de Davi Arrigucci Jr..]

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segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Sobre as dificuldades de não morrer (II)

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E, como prometido na última postagem, o tema ainda é a morte (ou a ausência dela), agora sob a perspectiva de duas grandes obras de dois grandes autores.

Em “As intermitências da morte” *, com a ironia e com a elegância de sempre – e como sempre dispensando travessões e verbos dicendi – José Saramago constrói uma fábula, no mínimo, instigante. A morte, aqui convertida em personagem, confronta os humanos mortais com a sua ausência: a partir de agora, a morte está de férias; a partir de agora, ninguém morrerá.

Daí, o autor desenvolve de maneira hábil, criativa e bem-humorada uma crítica à própria vida, com as suas morais, com as suas tradições, com as suas instituições e, sobretudo, com a premência da sua brevidade – não obstante o arcano e inglório desejo humano da continuidade, que agora é posto em cheque (cuidado com o que você deseja...).

Neste novo cenário de promessa de imortalidade tudo é posto em cheque. Cada pessoa é confrontada com a benção (ou com a maldição) da não-morte; cada família se vê às pelejas de lidar com seus moribundos que se recusam a morrer; cada instituição - das agências funerárias às companhias de seguro, do estado à igreja - é chamada a resolver as questões que emergem desta nova realidade. E, de modo especial (que elejo como tal por razões minhas), a igreja, que Saramago não poupa da sua crítica ácida e contundente – e, como já dito, elegante e bem-humorada. Senão, vejamos:

A igreja, senhor primeiro-ministro, habituou-se de tal maneira às respostas eternas que não posso imaginá-la a dar outras, (note aqui, traço característico do discurso direto de Saramago, a maiúscula indicando a alternação do diálogo em vez de aspas ou de travessão) Ainda que a realidade a contradiga, Desde o princípio que nós não temos feito outra cousa que contradizer a realidade, e aqui estamos.” (página 20)

(...) qualquer discussão sobre um futuro sem morte seria não só blasfema como absurda, porquanto teria de pressupor, inevitavelmente, um deus ausente, para não dizer simplesmente desaparecido. (página 35)

As religiões, todas elas, por mais voltas que lhes dermos, não têm outra justificação para existir que não seja a morte, precisam dela como do pão para a boca. (...) é para isso mesmo que nós (igreja) existimos, para que as pessoas levem toda a vida com o medo pendurado ao pescoço e, chegada sua hora, acolham a morte como uma libertação.” (página 36)

"A igreja, como não podia deixar de ser, saiu à arena do debate montada no cavalo-de-batalha do costume, isto é, os desígnios de deus são o que sempre foram, inescrutáveis, o que, em termos correntes e algo manchados de impiedade verbal, significa que não nos é permitido espreitar pela frincha da porta do céu para ver o que se passa lá dentro" (página 75)

Sem delongas, aqui me despeço de Saramago. Uso apenas quatro parágrafos desta novela – que sei: é muito mais rica do que isso – para tentar condensar (com as devidas escusas de ente desidioso) toda a sua crítica política, social e filosófica numa única pedrada desferida contra a janela de vidro da religião, mas que representa todo o resto... Aos bons ouvidos, um sussurro é um grito.

E quanto à Borges, o que diz ele sobre a não-morte?

Assunto para a próxima postagem.


* SARAMAGO, José. As intermitências da morte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
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sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Sobre as dificuldades de não morrer

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"O pior não é morrer. É não poder espantar as moscas."
Millôr Fernandes

"Não é que eu tenha medo de morrer. É que eu não quero estar lá quando isso acontecer."
Woody Allen 



Duas leituras recentes e um antigo incômodo: As intermitências da morte, de José Saramago, e o conto O imortal, de Jorge Luis Borges, são as leituras; o antigo incômodo é o pensar na morte. E se digo antigo incômodo é porque já não o é mais – um incômodo. O que não significa, todavia, que eu não pense mais no ‘assunto’; significa, tão somente, que o ‘assunto’ já não me incomoda... tanto.

Sim, pensar na morte é atributo de quem vive (e tem consciência disso... e tem mais de vinte anos); uns pensam menos, outros pensam mais, mas não há quem não pense; como não há quem não a tema – a morte, ela mesma (inclusive aqueles iludidos pelas fábulas da eternidade - isso eu afirmo, a despeito das frouxas e eventuais negativas).

Todavia, analisado por um viés unicamente razoável, o temor da morte é, a rigor, um despropósito. Sabemos que morreremos; estar vivo é condição única e bastante para morrer um dia; o vivo possui essa inclinação natural para morrer. Donde, portanto, tamanho desconforto? Por que tanta dificuldade em lidar com o destino irrevogável?, salvo melhor juízo...

Naturalmente, a primeira resposta é a consciência da morte, atributo exclusivamente nosso. O grito primal de tudo o que vive é a sobrevivência, genética e instintiva. E tudo o que vive, ressalvados nós mesmos, não sabe que morrerá. Nós, que sabemos, e que também gritamos pela sobrevivência, havemos de nos embater, hoje e sempre, com tamanho paradoxo.

Mas, o que mais incomodaria, além da consciência da finitude encarcerada num organismo geneticamente programado para sobreviver?

Talvez a brevidade da vida que, quem sabe, se fosse o dobro ou o triplo daquela que acomete a maioria, seria então suficiente (como fins de semana de quatro dias, ou férias de três meses...).

Ou talvez a noção da perda, se o que de fato incomoda não é a morte ela mesma (pois “onde estou ela não está, onde ela está eu não estou”, parafraseando Lucrécio), mas a perspectiva da ausência – aquela que sentimos dos que se vão e aquela que a existência sentirá de nós quando chegar a nossa vez. Afinal, nós somos muito importantes para a existência...

E, ainda, talvez pela perspectiva de ser convertido de um ente de tamanha importância (para a existência) num mero vestígio; vestígio que, naturalmente, vai se apagar, pouco a pouco, até o mais completo esquecimento...

Pois é, mas e as tais leituras? Como Saramago e Borges contemplam o tema ‘morte’, tão repetido, mas nunca exaurido, sempre instigante?

O traço comum entre as duas obras é o argumento. Ambas contemplam o mesmo tema, a ‘morte’, mas de um modo invulgar: tratam não do evento per si, mas da incapacidade humana de lidar com uma quimera: o antigo sonho, desejado e temido, da imortalidade (cuidado com o que você deseja...). E imortalidade aqui, diga-se, não é aquela pressuposta e fantasiosa eternidade da alma, mas a imortalidade do corpo, a infinidade da vida esta mesma, como a vivemos. Essa imortalidade seria, portanto, uma benção ou uma maldição? – eis o questionamento... E eis o assunto para a próxima postagem.
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(imagem)

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Breve reflexão sobre o impossível

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Escher, Waterfall, 1961 (clique para ampliar)
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Uma paradinha para refletir sobre o uso apequenado que se costuma fazer do conceito de ‘impossível’.

No dia a dia, e nos diversos domínios do relacionamento humano, fala-se ‘é impossível’ como a mesma desenvoltura que se diria ‘não devo’ ou ‘não quero’.

Naturalmente, há coisas que não convêm – ou porque são inadequadas, ou despropositadas, ou porque são, com efeito, inconvenientes mesmo; quase nunca ‘impossíveis’.

Há também aquelas trabalhosas, difíceis, que beiram o inexequível; chamá-las de ‘impossíveis’ costuma ser um exagero.

Ou, ainda, tomemos certos pudores, que convencem ser isso ou aquilo ‘impossível’ quando isso ou aquilo não passa de algo desaconselhável, ou imprudente – e mesmo assim a depender do sempre relativo referencial.

As muitas incapacidades e/ou limitações do sujeito costumam transformar predicados menos veementes numa coleção de ‘impossíveis’, e a falta de coragem costuma taxar de ‘impossível’ aquilo que se teme fazer.

Sim, há coisas impossíveis, mas muitas vezes o impossível é só aquilo que não se tem coragem de fazer...
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(imagem)

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

O Ler e o Prazer

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Jean Jacques Henner, 'La Liseuse'
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Além do preço a ser pago em moeda corrente por uma boa edição de uma boa obra literária, o prazer da leitura tem outros custos. A preguiça, por exemplo. Antes de lamber a ponta do indicador e virar a primeira página, a preguiça é o primeiro obstáculo a ser superado. Ah, pecadinho insidioso, tão doce e humano que sozinho poderia lotar o inferno... se tal lugar existisse (aliás, a se confirmar o inferno, acho que a preguiça só perderia em número de condenados para a luxúria).

Transgressões à parte, ler requer tempo também. E o tempo, em tempos hodiernos, pode ser despendido numa lista de atividades, digamos, menos custosas (e menos nobres) – um programinha de televisão, um filminho no DVD, um chopinho, um cineminha... (sequer menciono o Golias desse David: a tal Internet; este é assunto vasto, pra outra ocasião).

E há também, last but not least, a velha dificuldade com a qual todo leitor, invariavelmente, esbarrará ao longo da sua vida literária: encontrar um bom livro (previno que bom e ruim, aqui, como de resto em qualquer lugar, são conceitos vagos e flexíveis, pessoais e intransferíveis).

Livros pela metade, já li alguns; daqueles que não passei das primeiras páginas, há uma pilha. Entre os que li até a última linha, alguns foram lidos com tal estoicismo que faria Zenão ruborizar sob os pórticos da velha Grécia – e se trato aqui do prazer da leitura, ‘estóico’ não seria um termo precisamente adequado para adjetivar a prática.

De tempos em tempos, todavia, cai em nossas mãos, por misteriosos desígnios, aquele livro. O prazer é tanto que o bloco de papel só não nos acompanha ao banho – precisamente por ser de papel. Está no café da manhã, sacode com a gente no ônibus, almoça com a gente, divide a cama com a gente... Seja em público ou na privada, ele não nos larga.

Tive meus livros assim. Quando criança, não desgrudava de uma coleção de bolso de clássicos de aventura (Verne, Dumas, Wells, Swift e outros), raro presente de aniversário. Li de um fôlego só. Já menino crescido, meu avô me apresentou ao Para gostar de ler, aquela deliciosa coleção temática de crônicas e contos. O tempo passa, outros achados: O apanhador no campo de centeio, A metamorfose, Cem anos de solidão (é quando descubro García Marquez e dele procuro ler pouco menos que tudo). E o mesmo segue acontecendo com outros autores – poucos outros autores.

E nas intermitências das boas (e raras) descobertas, os longos períodos de estiagem. A pessoa peleja, peleja, e parece que nada é bom o bastante. Foi numa dessas secas que me atrevi a ler José Saramago, e comecei pelo Ensaio sobre a Cegueira *... Pronto, aconteceu outra vez!

Saramago é, numa palavra, alegórico. E suas alegorias são, noutra palavra, originais. Tanto quanto seu estilo – que, a propósito, pode assustar num primeiro momento. Sua narrativa peculiar pode intimidar o neófito; o leitor desavisado, que espera a fluidez comezinha de um texto tradicional, corre o risco de deitar fora aquela coisa esquisita, de parcos parágrafos, de virgulação econômica, sem travessões, interrogações e exclamações.

Mas, alvíssaras, eu resisti! E resistindo descobri a sátira elegante e bem-humorada do grande autor português. Com a sua ironia fina, Saramago proporciona um raro prazer: partilhar de uma visão iconoclasta das instituições,  que banalilza a tradição em benefício do espírito liberto, isento de imposições morais, livre para pensar. Descobri esse tesouro, e continuo descobrindo, agora com As intermitências da morte ** – a morte convertida em personagem é o motejo, um modo criativo e hábil de falar da vida com bom humor, espírito crítico e ironia.

A seguir, um aperitivo:

“Com as palavras todo cuidado é pouco, mudam de opinião como as pessoas.” (p. 65)

"(...) as palavras são rótulos que se pegam às cousas, não são as cousas, nunca saberás como são as cousas, nem sequer que os nomes são na realidade os seus, porque os nomes que lhes deste não são mais do que isso, os nomes que lhes deste (...)” (p. 72)


Aqui, outro aperitivo


* SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
 
** ____ . As intermitências da morte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
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sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Meu velho pai...

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Ao Zezé, uma homenagem singela e justa

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Tu foste, meu pai, meu exemplo
De todos, meu maior herói,
Teu manso semblante contemplo
E tanta saudade me dói

Eu trago lembranças doídas
De quando saías no inverno
Com roupas singelas, puídas
(pra mim, tu vestias um terno)

Chapéu de palha amassado
A te coroar a cabeça,
O alforje de couro do lado
- como é possível que eu esqueça?

Montando um bom cavalo baio
Saindo antes do amanhecer,
Em lágrimas, hoje eu me esvaio
No instante em que penso em você

E todas as horas do dia
Passavas na lida do gado,
Pois era o que tu querias:
ser trabalhador respeitado

Ficavas até a noitinha
Zelando pela criação,
E quando voltavas não tinha
P’ra nós, tanta disposição

Talvez eu não fosse capaz
De bem entender tuas ações,
Mas hoje, olhando p’ra trás,
Compreendo as tuas razões

Querias que nós, os teu filhos,
Seguros e com decisão,
Seguíssemos os nossos trilhos
Com garra, determinação

...

Deitado, afinal, no teu leito
Com os olhos perdidos no teto,
Mãos lassas pousadas no peito
Talvez só querendo um afeto

Daquelas mãos calejadas
Recordo-me, com carinho,
De quando, desajeitadas,
De leve, tocavam as minhas

E era, meu pai, meu desejo,
Mesmo a perceber teu cansaço,
Tocar a tua face com um beijo
De ti, receber um abraço

Mas mesmo naqueles instantes
Contigo eu podia contar -
tão perto, e também tão distante -
este o teu jeito de amar...

O tempo passou e cresci,
Tornei-me um homem formado,
Sabendo que devo a ti
Se hoje sou pai respeitado

É desse tempo, meu velho,
A forja do homem que sou
Em ti hoje ainda me espelho:
sou como meu pai me ensinou

Legaste uma herança valiosa,
Tão mais do que meros trocados,
Deixaste uma história preciosa,
Da vida de um homem honrado

Suporto, infeliz, tua ausência
Mas sei que sou privilegiado
Pois tive a grande experiência
De um dia viver ao teu lado

Apenas lamento, dolente
O abraço que nunca te dei
E não poder ver novamente
Teu rosto, que nunca beijei...

(Brasília, 2004)

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E uma modinha de viola, do jeito que ele gostava:



José Ávila de Souza
*  03/09/45
+ 06/02/04
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quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Cativeiro

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eu cativo do tempo, carcereiro imaginário

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e passa o carcereiro tempo, pra cá e pra lá...

passa o tempo a vigiar o tempo

caminha surdo e lento pela sombra do corredor

- cativeiro do tempo e meu -

cheiro de mofo, paredes infiltradas, reboco descascado

teto caótico de fios e fendas e manchas e trincas

lascas da pintura antiga na eminência de despencar

sobre o chão maltratado e sujo, imundo e fluido

luzes mortiças, bulbos pretos de inseto, luminárias decadentes

arandelas indecentes, azinhavre e ferrugem, luz mortiça

corredor impossível, imenso claustrofóbico

reto, labiríntico, anguloso, vermicular

(absurdo sem-fim, Escher)

aqui, cativos do tempo, eu e o tempo...

...

mas virá outro tempo

(que agora nunca chega...)

libertará do cativeiro este tempo

e a mim da consciência de prisioneiro

(que jamais deixarei de ser...)

sim, liberto

com ele?... dele?...

liberto como a ave que cantará lá da gaiola nas primeiras luzes do dia redentor?...

- precursor de outra noite, a próxima?...

(mas e esse tempo que nunca chega agora... eterno agora)

...

ah, conforto morno úmido da prisão imunda

que eu quererei quando liberto pelo tempo

ansioso pelo tempo, o próximo...

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...e o tempo carcereiro passa imaginário (eterno agora) pra lá e pra cá...

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(imagem)

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Quem?...

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Quem nunca pensou em jogar o carro contra um poste só para ver o que acontece?
Quem nunca bateu os braços feito asas enquanto forçava a mente pra, quem sabe, assim voar?
Ou nunca tentou mover um objeto com a força do pensamento?...
...ou lamber o próprio cotovelo?


Quem nunca teve medo de romper um aneurisma fazendo força sobre o intestino constipado?
Quem nunca se imaginou em pleno ato sexual com alguém que não se deve imaginar em pleno ato sexual?
...ou coçou uma comichão revirando os olhinhos de satisfação?


Quem nunca fez careta para o espelho?...
Ou cara de galã de cinema, ou de modelo sexy, piscando o olho com malícia?
Quem nunca falou sozinho?
Ou bebeu direto da jarra?
Comeu direto da panela?
Quebrou uma coisa e escondeu?...


Quem nunca chorou sem motivo algum?
...ou por muitos motivos que de tantos não sabia por que estava chorando?
...ou chorou só para que o soubessem triste?


Quem nunca provou lágrima?
...ou água do mar?


Quem nunca teve uma paixão secreta?...
...e doeu o peito uma dor de verdade?


Quem nunca amou sem ser amado?
...e chorou sozinho?


Quem?...

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Update, 1 de setembro, 22:20:

"Quem nunca esteve diante de um precipício ou de uma janela muito alta e pensou: e se eu me atirar daqui?"
Mariê
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