quarta-feira, 27 de abril de 2011

"O 'Racionalismo' Cristão Medieval"

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No último ensaio, surge a Patrística, e com ela a Idade Média.
Agora, no apogeu do pensamento filosófico cristão, Tomás de Aquino enfrenta  a dissidência fundamentalista. É o começo do fim de um longo e obscuro período na história da filosofia.

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"O 'Racionalismo' Cristão Medieval"

Frade dominicano e teólogo, Tomás de Aquino é o maior representante da Escolástica no seu apogeu. Contudo, são os seus antecessores os responsáveis por lançar os fundamentos desta escola filosófica medieval, que busca conciliar o ideal de racionalidade, corporificado na tradição grega do platonismo e do aristotelismo, com a experiência da Revelação, tal como a concebe a fé cristã.

Um par de séculos antes de Tomás de Aquino publicar sua Suma Teológica, Anselmo de Cantuária – tido como fundador da Escolástica Medieval – retoma com redobrado vigor o projeto de integração razão-fé iniciado por Agostinho, e adota como princípio fundamental a máxima ‘fides quarens intelectum’ (a fé na busca da compreensão). Com efeito, para o mentor do Argumento Ontológico para a existência de deus*, é necessário primeiro crer para depois buscar o entendimento sobre o que se crê. Apesar da sua fé na revelação, Anselmo manifesta grande confiança na razão enquanto instrumento de compreensão dos dogmas revelados.

O segundo ‘pai’ da Escolástica é Pedro Abelardo, que embora leve adiante o esforço de Anselmo para explicar racionalmente a fé, deste acaba dissidindo. Além de formulador do Conceitualismo**, o que o eleva à condição de maior teólogo e filósofo escolástico do século XII, Abelardo também se notabilizaria por sua malograda história de amor pela bela Heloísa, narrada na sua obra História das Minhas Calamidades.

Quando professor em Notre-Dame, Abelardo torna-se preceptor de Heloísa a convite do cônego Fulbert, tio da bela e culta jovem. Apaixonados, os jovens mantêm por dois anos uma relação secreta, até que Heloísa se descobre grávida; o casal foge e se casa em segredo. Sentindo-se enganado, Fulbert arquiteta sua vingança. Certa noite, a mando do cônego, um grupo invade a casa de Abelardo e o castra; humilhado, o jovem se retira para a Abadia de Saint-Denis, enquanto Heloísa torna-se freira no Mosteiro de Argenteuil.

Talvez por influência da própria história, Abelardo, muito embora seja ele próprio um religioso, acaba por ultrapassar com o seu pensamento os limites da ortodoxia cristã, donde advém a sua ruptura com Anselmo, de orientação mais conservadora. Na sua obra Dialética, o pensador propõe um exame crítico das escrituras à luz da razão, de modo a submeter os dogmas da fé à exigência crítica do processo dialético –  caberia, portanto, à razão o ultimato para a solução das questões controversas entre os dois fundamentos. Todavia, noutra obra de Abelardo –  esta de cunho apologético, enquanto Dialética se insere no contexto da Lógica – é possível detectar uma contradição:
(...) onde não é a razão que dá o assentimento, tampouco pode ela refutar qualquer coisa. (...) Quem poderá refutar (uma abominação teológica) se se exclui toda discussão no domínio da fé?
(Diálogo entre um Filósofo, um Judeu e um Cristão)

Caberá, portanto, a Tomás de Aquino superar as posições ambíguas de seus antecessores que, ao abordarem a relação entre fé e razão, acabam por confundi-las. A filosofia tomista, por sua parte, não opõe um conceito ao outro, mas os distingue; e assim distintas, uma – a razão humana imperfeita – está subordinada à outra – a razão divina que, segundo o filósofo, é perfeita.
Para a salvação do homem, é necessária uma doutrina conforme a revelação divina, além das filosóficas, investigadas pela razão humana. Porque, primeiramente, o homem é por Deus ordenado a um fim que lhe excede a compreensão racional, segundo a Escritura (Is 64, 4): “O olho não viu, exceto tu, ó Deus, o que tens preparado para os que te esperam”. Ora, o fim deve ser previamente conhecido pelos homens, que para ele têm de ordenar as intenções e atos. De sorte que, para a salvação do homem, foi preciso, por divina revelação, tornarem-se-lhe conhecidas certas verdades superiores à razão.
Mas também naquilo que de Deus pode ser investigado pela razão humana, foi necessário ser o homem instruído pela revelação divina. Porque a verdade sobre Deus, exarada pela razão, chegaria aos homens por meio de poucos, depois de longo tempo e de mistura com muitos erros; se bem do conhecer essa verdade depende toda a salvação humana, que em Deus consiste. Logo, para que mais conveniente e segura adviesse aos homens a salvação, cumpria fossem, por divina revelação, ensinados nas coisas divinas. Donde foi necessária uma doutrina sagrada e revelada, além das filosóficas, racionalmente adquiridas.
(Suma Teológica)

Todavia, e naturalmente, Tomás de Aquino não alcança unanimidade entre os pensadores cristãos da sua época. Os que o sucedem, em vez de consolidar as bases do seu pensamento, o questionam, sobretudo sob um ponto de vista fundamentalista, assentado sobre a "verdade" e a "revelação" absolutas, bem como sobre a absoluta autossuficiência da fé, o que virá a caracterizar a dissolução da Escolástica Medieval.

Deste modo, se de um lado firmam-se irredutíveis sob os umbrais da fé os que a defendem como único e último argumento (John Duns Scot e Guilherme de Ockhan são alguns desses defensores fundamentalistas da revelação), do outro, abre-se o caminho para a filosofia moderna, a qual buscará a total autonomia da razão e da ciência em relação aos dogmas da religião.

(*) O Argumento Ontológico baseia-se na demonstração de que a existência de deus pode ser provada a priori, pois se trata de uma verdade evidente à razão e à intuição, não apenas afirmada pela revelação.
(**) Doutrina medieval que atribui às idéias gerais os universais, isto é, uma concretude específica que os distingue das abstrações ou sinais linguísticos, ao passo que possuem forma real e existente, mas somente no interior da mente humana.

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Próximo post: "O Renascimento da Razão"

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