sexta-feira, 16 de março de 2018

A alma do bicho

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Nota

Este é um ensaio de pura reflexão sobre um determinado modelo de produção – na minha opinião suicida, no médio ou no longo prazo.
Não pretendo apontar alternativas ou sugerir soluções – não creio haver alguma realmente eficaz e viável.

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Para o homem primitivo, os deuses eram visíveis. Suas divindades eram o Sol, o Oceano, o Trovão, além de uma grande variedade de animais  os quais hoje temos como nossos “inquilinos”, pois passamos a nos julgar os donos do planeta.

O homem primitivo era, portanto, um sábio! Ele sabia reconhecer no poder da natureza a sua própria insignificância, e era capaz de vislumbrar sob a carcaça selvagem de um bicho qualquer uma centelha, a mesma que, quando em nós, damos o nome de “alma”.

Durante milênios, e desde os primórdios, homens e animais foram parceiros... ou inimigos mortais – sempre com respeito, em ambos os casos. A revolução agrícola se fez pela tração de bois e anos, batalhas se travaram sobre o dorso de corcéis, o alimento proteico nutriu o cérebro a partir do sacrifício de incontáveis exemplares de muitas espécies – e o fez desenvolver precisamente para subjugá-las. Mesmo no campo afetivo, seres humanos vêm recolhendo há milênios o afeto irracional e incondicional dos bichos de estimação, de um modo que seu próprio semelhante é incapaz de oferecer.

E quanto aos tempos pós-modernos? O que há de novo nessa relação tão antiga quanto paradoxal? Muitos animais certamente ainda nos são muito úteis, outros são pragas devastadoras, parasitas mortais. Desfrutamos ainda da companhia de muitos deles com carinho comedido – ou com despropositado exagerado, às vezes.

Todavia, é deveras incômodo, desde que se possua uma fagulha do antigo respeito, os bichos enclausurados, confinados, cerceados ao longo de sua curta existência de tudo o que lhe é natural, com o único objetivo de servir de matéria-prima à poderosa indústria alimentícia, ávida em atender à demanda crescente da superpopulação planetária.

Currais imensos, repletos de dezenas de milhares de reses malsãs, lá estão para responder à avidez irrefreável pelo hambúrguer nosso de cada dia. Viveiros insalubres, forrados de aves desnaturais, existem para atender diuturnamente à vertiginosa produção de uns ovos desbotados, de uns empanados de composição indecifrável. Depósitos enormes, infernos fecais insalubres, acolhem multidões de porcos imunodeprimidos para suprir as mesas com o nutritivo café da manhã tão apreciado lá pelo norte do continente, e tão imitado por aqui.

Neste exato momento estão assim encarcerados em depósitos morbíficos, sob o bochorno do metano a desprender da matéria fecal, sujeitos a uma inaudita promiscuidade bacteriana e viral a transitar entre os organismos enfraquecidos, sob a égide do lucro e com a nução do mercado, um número incalculável desses entes animais, os antigos deuses...

E assim permanecerão, enquanto houver demanda, enquanto o modelo míope de produção capitalista assim ordenar.

Ao menos até o dia em que a natureza se sublevar.

Aí então talvez um vírus... uma gripe... uma mutação...















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